sábado, 10 de julho de 2010

mulheres que amam demais...


Quando o amor se torna infernal: relatos de Mulheres que Amam Demais
Mon, 19/04/2010 - 01:20 — Anonymous
Por Mariana De Felice

Uma a uma elas ocupavam as cadeiras, dispostas em
formato circular, na pequena sala de uma Igreja de São
Paulo. Era uma tarde de sábado de início de setembro, que
para os paulistanos é sinônimo de tempo instável, alternando
entre o frio do fim de agosto e o sol da primavera que se
aproxima. Por duas horas, sentadas ali na sala abafada, 18
mulheres enfrentaram o desafio de colocar em palavras seus
sentimentos, angústias e histórias de vida. Eram mulheres de
distintas idades, níveis sociais e educacionais, mas unidas
pelo elo de uma só realidade: elas amam demais. Para elas, amar é sofrer e, por isso, comparecem
às reuniões do grupo Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA).
Com o objetivo de investigar o amor como causa de sofrimento e aprisionamento na dor, esta
repórter se infiltrou em reuniões do MADA, trazendo aqui relatos de quando o amor se torna
infernal. “Hoje você é a pessoa mais importante aqui. Seja muito bem-vinda”. Foi com essa frase
que fui recebida junto ao seio da irmandade, após um breve depoimento sobre “meu amor
patológico”. Nunca tal empatia com relação aos meus sentimentos e histórias havia sido
manifestada anteriormente. Após a reunião, o abraço de cada MADA, acompanhado pelas frases
“Paz e Serenidade. Seja muito bem-vinda”, fez com que o sentimento de pertencer àquele grupo
tomasse conta desta repórter, que lhe escreve trazendo histórias de Mulheres que Amam Demais.
Soam às 6 da tarde do sino da igreja. É quase o início da reunião e o silêncio é geral. Em todos os
rostos, a expressão de desconforto. Nenhum sorriso. Não é fácil falar dos próprios sentimentos e
reconhecer suas fraquezas. Apenas cada uma daquelas mulheres sabe as barreiras internas que
venceu até chegar ao grupo e reconhecer a necessidade de ajuda e suporte frente à sua doença.
São 18 mulheres - brancas, negras, jovens, velhas, orientais, altas, baixas, advogadas,
professoras, secretárias... - que não conseguem controlar a manifestação do seu amor e, por isso,
possuem uma patologia, segundo a psicóloga clínica e psicoterapeuta Rita Romaro. Elas priorizam
o amado e tentam mudar a relação que não traz felicidade por que não acreditam que podem ser
felizes sem o outro. “As pessoas que amam demais acreditam que o ser amado deve ser o foco de
sua felicidade e não apenas parte dela”, explica Edilaine Scabello, psicóloga associada à Sociedade
Brasileira de Sexualidade Humana (SBRASH).
Na época em que Julia* participou pela primeira vez de uma reunião do MADA, ela passava por um
período de controle excessivo sob a vida do namorado: checava as chamadas do celular dele,
opinava sobre os amigos, exigia provas de amor, etc. Ao ouvir os depoimentos das outras
mulheres do grupo, ela percebeu que agia da mesma maneira que muitas outras Mulheres que
Amam Demais. “Eu me sentia tão mal quando sai daqui pela primeira vez, que quase vomitei. A
sensação no meu estômago era indescritível”, conta a moça que, naquele dia, percebeu o inferno
em que vivia, os erros que cometia e suas falhas de caráter.
Algumas atitudes são típicas de Mulheres que Amam Demais, como a submissão a relacionamentos
destrutivos – expressão muito utilizada por diversas companheiras, como se denominam – em
nome da dependência do outro. A psicóloga Rita explica que essas mulheres são mais dependentes
e estabelecem relações confusas, tumultuadas e permeadas pelo temor do abandono. “O amor
patológico é impulsivo, destrutivo e não há preocupação com o bem-estar das pessoas envolvidas
na relação”, afirma Rita. As pessoas que amam demais possuem dificuldade em lidar com
frustrações, raiva, separações e com a própria possibilidade de amar. Por não conseguir lidar com
o sentimento de perda, as MADA estabelecem relações amorosas não saudáveis e destrutivas,
acrescenta Edilaine.
Mas seriam elas dependentes de um homem? Não necessariamente. Não é apenas o amor
romântico que caracteriza a dependência dessas mulheres. Em seus depoimentos, elas relatam a
necessidade de serem amadas e aceitas no seio familiar, no círculo de amigos, no ambiente de
trabalho e/ ou por um homem na maioria dos casos. Após cinco anos de ausência, Heloísa* retorna
ao MADA, que frequentou por três anos, agora principalmente pelos filhos. Mas não se engane.
Heloísa não está naquela sala para ajudar os filhos, e sim em busca de assistência para si mesma,
que se afunda em dívidas financeiras e problemas emocionais devido ao comportamento do filho de
20 anos, alcoólatra. Heloísa é apenas uma das 18 mulheres daquela reunião que se sacrifica por
filhos, amigos, companheiros e familiares com o intuito apoiá-los, agradá-los e se mostrarem
presentes. Mas na pequena sala elas aprendem a se valorizar e voltar o olhar ao próprio bemestar.
Karina* é uma figura de destaque na reunião: bonita, desbocada, fumante compulsiva, mãe,
baladeira, namoradeira e esportista. Ela chega atrasada, mas logo quer dar seu primeiro
depoimento: “Você aprende na sociedade que para ser boa companheira, precisa estar lá pelo
outro. Você dá o dinheiro que não tem e até dá a bunda se te dizem que isso vai salvar o outro. O
c***! Você não tem que se sacrificar pelo 'impiastro'. Você tem que pensar em você mesma”. Esse
é apenas um dos depoimentos da polêmica Karina, que busca mostrar a importância do amorpróprio.
Durante toda a reunião, ela alterna entre depoimentos que despertam o riso geral das
companheiras e pausas para fumar um cigarro.
Um bebê desejado e amado não só durante os nove meses na barriga da mãe, mas também nos
anos seguintes ao longo da infância feliz. Essa talvez seja a realidade do leitor dessa reportagem
ou de muitas pessoas que ele conheça, mas, com certeza, não é a das MADA. Durante a infância
elas não receberam atenção no lar e por isso, demonstram carência excessiva e dependência do
outro, como uma forma de compensação.
O amor patológico pode estar relacionado às relações e aos conflitos vivenciados na infância e que,
segundo Edilaine, desembocam na identidade de uma mulher que quase não possui chances de
vivenciar as experiências amorosas em sua plenitude. “Vêm de um lar desajustado, em que suas
necessidades emocionais não foram satisfeitas” é primeira característica de uma Mulher que Ama
Demais, de acordo com a literatura oficial do grupo.
Durante a sessão de depoimentos, diversas companheiras trazem seus exemplos de vida,
baseando ali as raízes de sua dependência. “Eu sempre fui muito apegada ao meu pai,
principalmente depois que ele se separou da minha mãe. A minha dependência de uma figura
masculina vem desse apego e da relação conturbada com minha mãe. Se eu não tenho um
homem, parece que falta uma parte física”, relata Giovana*, que se senta à minha frente, mulher e
mãe, mãe e mulher.
A dependência do outro não cria apenas necessidade emocional de atenção, mas também o desejo
de transformar a outra pessoa. Já que essas mulheres não conseguiram modificar os seus próprios
pais e criar relações de afeto com eles, elas buscam transformar o homem por meio do seu amor.
“Você não pode tentar mudar a outra pessoa e a relação. O problema não está nelas e sim em
você”, comenta Diana*, a companheira mais antiga na irmandade durante o encontro.
A veterana Diana é a MADA que mais faz depoimentos, participa da reunião e faz leituras. A moça
veste uma saia que revela suas pernas de dançarina e ajuda a conduzir a sessão do MADA. Ela
conta que, durante os anos no grupo, percebeu que quando uma relação não satisfaz a mulher, ela
é a única pessoa culpada por aquela situação, já que ainda permanece no relacionamento caótico e
que não traz felicidade. “Muitas pessoas acreditam que não irão suportar viver sem o parceiro que
supostamente amam e preferem manter-se infelizes e insatisfeitas enquanto perdurar a relação”,
afirma a psicóloga Edilaine.
“Quando eu estava no caos, eu queria a serenidade. E quando encontrava a serenidade, achava
entediante, procurando o caos novamente”, comenta Diana, após fazer uma das leituras sobre as
características de uma MADA. A literatura do grupo estipula que essas mulheres não se atraem
pelos homens gentis, estáveis e seguros, porque os considera enfadonhos. Já as relações instáveis
criam agitação e implicam em problemas que precisam de soluções e com os quais a mulher pode
se ocupar. Ao comentar as colocações de Diana, Karina desperta novamente o riso das
companheiras: “Eu saia com meninos novinhos. Delíiiiicia. Me sentia podendo, sabe, aqueles
meninos de 20 anos comentando que eu, com quase 40, estou com tudo em cima. Mas isso não
era saudável para mim. Era o caos e eu procurei me afastar disso”.
Quantas mulheres você conhece que se queixam do próprio corpo? Com certeza, não são poucas
as que acham que estão gordas, têm muitas celulites ou têm o nariz muito grande. A maioria de
nós (esta repórter se inclui na lista) acha que o cabelo podia ser diferente, ou a altura, ou o peso,
ou o tipo físico, ou tudo isso e muito mais. E no MADA a realidade não é diferente. A relação com o
corpo e a questão da auto-estima permeiam os discursos de diversas mulheres, que aprendem a se
valorizar por meio do grupo.
Na pequena e abafada sala, muitas mulheres se mostram insatisfeitas com o próprio corpo. A razão
principal: consideram estar acima do peso ideal. No entanto, o próprio grupo possui explicações
para o aumento de peso recorrente em Mulheres que Amam Demais. Algumas delas possuem
tendências psicológicas e até bioquímicas a se tornarem dependentes de doces, principalmente na
fase em que estão mais depressivas. E ao se depararem com a realidade do excesso de peso, a
auto-estima se torna ainda mais baixa e elas comem mais. Ou seja, o sistema de dependência e
insatisfação nessas mulheres funciona como um ciclo.
“Após o fim dos meus relacionamentos, eu normalmente emagrecia e ia pegando qualquer
'bostinha' que aparecia devido à minha carência. Mas após o meu divórcio, eu percebi como o
MADA está me fazendo bem. Dessa vez eu não sai correndo para emagrecer, o que, diga-se de
passagem, eu estou precisando, e conhecer alguém para saciar minha carência. Eu estou dando o
meu tempo, para me conhecer. O MADA virou o meu programa de sábado de noite”, relata
Fernanda* sobre sua experiência de aceitação do próprio corpo e da realidade em que se encontra.
Além disso, a MADA reflete nesse depoimento sua postura em relação ao grupo, que se tornou um
compromisso religioso em sua agenda.
Você se sentiria confortável em falar sobre sua própria vida para um grupo de desconhecidos? E
em contar aos seus amigos e familiares que você frequenta um grupo anônimo porque ama
demais? Não há um padrão para essas respostas entre as companheiras do MADA. A postura com
relação aos encontros e ao grupo é extremamente diversificada entre as mulheres presentes na
reunião.
Beatriz* é uma das companheiras que faz propaganda do MADA, convidando conhecidas a
participarem do grupo, principalmente quando identifica nelas o comportamento característico de
uma MADA. “Eu tenho uma colega no trabalho que é extremamente parecida comigo antes de
entrar para a irmandade. Eu era insegura e queria agradar a todo mundo. Comecei a vir para as
reuniões e agora eu vivo muito mais feliz. Quando ela comentou sobre minha mudança de postura,
contei sobre o MADA e a convidei a participar de uma reunião”, relata Beatriz.
Outras mulheres mantêm o grupo em segredo, com o medo de que algumas pessoas não
entendam sua participação. “Meu companheiro me perguntou hoje para onde eu estava indo e eu
disse que era algo meu. Ele me questionou novamente e eu disse apenas que é uma terapia em
grupo, que me faz muito bem. Quando eu me sentir segura, vou contar sobre o MADA”, relata
Luiza*. A moça participou do grupo por dois meses e quando considerou que apresentava
comportamento mais saudável, abandonou as reuniões. Porém, pouco tempo depois, voltou a agir
da mesma maneira. “Como muitas companheiras falaram, o comportamento de uma MADA não vai
totalmente embora. Você fica melhor, mas tem sempre que se policiar”.
O grupo se tornou para muitas dessas mulheres uma maneira de permanecer sob vigília constante.
Ou seja, ir às reuniões, lhes serve como exemplo e apoio, já que elas ouvem histórias e relatos
alheios de mulheres que apresentam o comportamento de uma MADA, ou que já apresentaram,
mas que necessitam vigiar suas próprias atitudes. Por isso, algumas delas se sentem culpadas se
faltam ao compromisso religioso de sábado, porque sabem que elas são as mais prejudicadas com
a ausência.
A maioria das companheiras relata a relutância natural em ingressar no grupo ou ir às reuniões, já
que o processo de aceitação de que possuem uma patologia e de que necessitam de ajuda é difícil.
“Tudo é motivo para não vir. O carro quebrou, está trânsito, você tem outro compromisso, faz frio,
chove, o cara te ligou para sair. Mas você tem que vir por você, para se ajudar”, relata a veterana
Diana, em tom de convencimento.
Uma terapia de grupo. É assim que muitas encaram a irmandade. Na pequena sala elas podem ser
ouvidas, aprender com a experiência alheia ou identificar-se no comportamento de outra pessoa. A
psicóloga Rita afirma que o MADA é um grupo de apoio que exerce papel fundamental por propiciar
troca de experiências, valorização dos avanços e compreensão para as “recaídas” vivenciadas. “No
entanto, os grupos do MADA não podem ser considerados terapêuticos como um processo de
psicoterapia de grupo. Mas eles exercem uma importante função terapêutica na conscientização da
problemática e no controle dos impulsos”, conclui a psicoterapeuta.
O grupo MADA propõe o uso de oito instrumentos para a recuperação de uma Mulher que Ama
Demais: reuniões, amadrinhamento, literatura, escritos, serviço, anonimato, telefone e plano de
vida. Somam-se a esses instrumentos os 'doze passos de MADA' e as 'doze tradições de MADA',
que auxiliam na recuperação e na manutenção da unidade do grupo. “Os passos e as tradições
funcionam como elementos norteadores, como um farol na neblina desses confusos sentimentos”,
afirma Rita.
Por meio dessa extensa gama de materiais e ferramentas, a mulher pode se recuperar de amar
demais, passando a se aceitar, amar a si própria, aceitar o outro como ele é, se conhecer, cuidar
de si mesma, ser confiante, abandonar os relacionamentos destrutivos e identificar os
relacionamentos que possuem futuro.
Existem 30 grupos MADA no Brasil, em diversos estados e cidades. Em São Paulo, a primeira
reunião do grupo foi realizada em 16 de abril de 1994. O grupo foi criado a partir do livro de Robin
Norwood "Mulheres que Amam Demais" (1985), baseado na experiência da autora, psicóloga e
terapeuta familiar, e na experiência de centenas de mulheres. O MADA adota conceitos do
Alcoólicos Anônimos (AA) - o pioneiro dessa categoria de grupos.

* Os nomes presentes nessa reportagem são fictícios para preservar a identidade das MADA

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